Por Rogério Medeiros Garcia de Lima
Desembargador do TJMG
“‘N és mais, meu senhor, do que és: um mortal! Perucas podes ter, com louros aos milhões. Alçar-te com teus pés nos mais altos tacões, Serás sempre o que és: um pobre ser mortal! (De Mefistófeles, o Diabo, para o Doutor Fausto, em “Fausto”, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe). ”
Depois da leitura, meu melhor passatempo é o cinema. Sou cinéfilo apaixonado e assisto aos filmes nas poucas horas vagas. Um filme, um livro e até as nossas próprias vidas contêm várias interpretações. Gosto de matutar a respeito dos seus significados subjacentes. Escreverei aqui sobre “Regeneração de um devasso”, excelente filme curta-metragem, em preto e branco. Foi rodado em São João del-Rei, no ano de 1968, sob a direção do saudoso Sérgio Ratton. O devasso – protagonista da película – é interpretado pelo inesquecível Artur Nogueira. O travesso Artur, figura folclórica da cidade, irmão de Dona Aura Salomé e amigo de muitos amigos – inclusive eu, apesar da abissal diferença de idade. Completados os meus dezoito anos de vida, comecei a frequentar a “Cantina Calabresa” (hoje “Cantina do Ítalo”). Tomei assento, sem maiores dificuldades, à famosa “Mesa Zero”, onde pontificavam figuras do naipe do Artur, Titita Besamat, Pedrão e outras feras. Não incluo o amigo Demônio, porque este era faiscante: aparecia e sumia como um corisco… “Zunindo qual uma seta”, no verso de “Festa no céu”, de Noel Rosa, que o Artur adorava recitar. Com um ano de “Mesa Zero”, o iniciado completava graduação e doutorado em boemia. Em “Regeneração”, várias figuras conhecidas desfilam pela tela – muitas delas, infelizmente, já falecidas. O cenário do filme é a antiga zona boêmia de São João del-Rei. Duas peculiaridades dela me intrigavam. A primeira, era a localização: um beco ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Da virtude ao pecado a distância é de apenas alguns passos… Há o caso de dois irmãos solteiros, de tradicional família são-joanense. Não lhes revelo o nome nem a pau, sob pena de perder a amizade de um velho mestre e amigo aqui da terra. Um dos irmãos era muito boêmio e se fartava de cervejas e mulheres no antigo prostíbulo, até o amanhecer. O outro era beato: levantava cedo, assistia à missa das seis horas, no Carmo, e ia trabalhar. Os irmãos se cruzavam pelas manhãs, na Rua Direita. O boêmio deixava a zona, no rumo de casa. O beato vinha a caminho do ofício religioso. Assim é a vida. Uns pecam e outros rezam. Ao fim, somos todos santos… A segunda peculiaridade é a denominação da rua da zona: Marechal Bittencourt. A explicação é histórica. Nossa cidade homenageou o bravo militar gaúcho Carlos Machado de Bittencourt (1840 – 1897). Lutou na Guerra do Paraguai. Era ministro da Guerra do presidente Prudente de Morais, em cujo governo ocorreu a Guerra de Canudos, no sertão da Bahia.
No dia 5 de novembro de 1897, Prudente de Morais participava da cerimônia de recepção aos veteranos de Canudos, no Arsenal de Guerra, Rio de Janeiro. O soldado Marcelino Bispo de Mello, armado com uma garrucha, investiu contra o presidente. O marechal Bittencourt desarmou o assassino, mas ele sacou um punhal e matou o ministro com vários golpes. Falemos do filme. O devasso – Artur Nogueira – amanhece trancafiado numa cela de prisão. O guarda destranca a grade e o liberta. O devasso caminha – numa passada malandra e com roupas despojadas – até a zona boêmia. Reencontra uma das mulheres e se deita com ela. Cenas picantes para a época… Bebe e joga baralho na companhia de outros malandros, nos interlúdios dos acalorados encontros sexuais. Numa tarde, o devasso, com um bando de homens e mulheres, vai em um velho calhambaque ao alto do morro onde se ergue o Cristo Redentor. Uma farra monumental ali se desenrola. Noite alta, o embriagado devasso caminha trôpego em direção ao beco da zona. Avista, no alto do campanário direito da Igreja do Carmo, sua figura vestida numa impecável túnica branca de anjo, com duas enormes asas às costas. Tenta enxergar melhor e a sua figura se transforma num repulsivo Diabo, com maquiagem assustadora, capa, chifres na cabeça e tridente nas mãos. As cenas seguintes mostram o devasso bem vestido, de blazer, a caminhar pelas ruas do centro da cidade. Cumprimenta as pessoas e entra em uma livraria, onde folheia um livro sobre a vida de Jesus Cristo. Morre o devasso. O cortejo fúnebre segue pelas ruas da cidade. Artur adorava contar histórias sobre o filme. Os chifres do horrendo Diabo foram improvisados com casquinhas de sorvete, fornecidas pelo Claudionor, dono do estabelecimento fundador da Esquina do Kibon. A exibição do curta-metragem, na sede do Athletic Club, escandalizou a alta sociedade são-joanense. Artur repetia, gargalhando: – O Sílvio Assis, presidente de Athletic, até afundou na cadeira… Eu assisti à película várias vezes. A primeira vez, ainda adolescente, no Cine Glória. Creio que era 1978 e se comemoravam dez anos do lançamento do filme. Ri como se fosse comédia. Com o passar do tempo, percebi sua profundidade filosófica: sugere as dicotomias anjo e demônio, bem e mal, virtude e pecado, vida e morte. Será o filme inspirado no clássico livro alemão “Fausto”, de Goethe? O velho e renomado médico Doutor Fausto vendeu sua alma a Mefistófeles (o Diabo) para ser eternamente jovem. Depois de muitas provações, concluiu que só o amor salva a humanidade. Infelizmente, Sérgio Ratton faleceu há pouco tempo. Nunca perguntei a ele sobre essa possível inspiração goetheana. O excelente filme me faz pensar: só a morte regenera? Ou, às vezes, nem ela? Quem consegue entender e explicar? Regeneração é para a frente: não se regenera o que passou. Por isso, Artur é para sempre; Sérgio Ratton é para sempre; São João del-Rei é para sempre; e nós todos somos para sempre, embora mortais.